sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

"Os mercados cometem crimes contra a humanidade"

Boaventura de Sousa Santos
"Os mercados cometem crimes contra a humanidade"

por Filipa Martins, Publicado em 01 de Janeiro de 2011 no Jornal I  

Para o sociólogo, Portugal está a ser vitima de um ataque especulativo não justificado dos mercados internacionais

O primeiro mandato de Cavaco Silva foi medíocre, o presidente Obama tornou- -se um provinciano, os mercados são um bando de criminosos bem vestidos e Saddam Hussein foi morto porque cometeu o erro de querer passar as reservas de petróleo de dólares para euros. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos é a delícia de qualquer jornalista, cada frase parece dar um óptimo título. Mas é sobretudo franco, incómodo e fiel à organização do mundo que defende. A conversa aconteceu no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e as palavras foram surgindo da mesma forma que, a acreditar nos mercados, os países entram em bancarrota: por contágio.



Acaba de receber uma bolsa de 2,4 milhões de euros do European Research Council para ajudar a Europa a ver o mundo. Não seria melhor - e trata-se de uma provocação - usar essa quantia para ajudar a Europa a ver-se a si mesma?

(risos) As duas coisas não estão em conflito. A Europa andou vários séculos a tentar ensinar o mundo, com uma visão evangelizadora da religião, depois com o progresso, com a investigação científica e sempre com a ideia de que a Europa não tinha nada a aprender com o mundo, uma vez que a Europa era o centro do melhor saber e do melhor poder. Tinha toda a clarividência e do outro lado estava a barbárie. Chegámos a um ponto em que a Europa começou a ter dúvidas sobre as suas soluções. A crise que vivemos não é apenas uma crise financeira ou económica, como estamos a ver pelo comportamento das lideranças políticas. Há um desconhecimento histórico do que significa ser europeu, de qual é o valor da Europa. Ao mais pequeno sobressalto já não há Europa, há aqueles sujos, incompetentes, pouco cumpridores do Sul da Europa - como os gregos, os portugueses, irlandeses - e os outros - os alemães, os que aguentam. De repente, todo aquele verniz de uma Europa conjunta, solidária, unida, desaparece.

2010 foi o ano do fim das ilusões?

As crises, que já vinham de 2008 e 2009, e que se pensava que poderiam ser superadas em 2010, não o foram. Pelo contrário, estão em constante agravamento e, provavelmente, vão ser muito mais graves para os portugueses a partir de Março. Nesse aspecto, as ilusões terminaram.

Era possível prever o que se passou em 2010?

Em 2009, quer ao nível do défice, quer ao nível da dívida pública, Portugal estava numa situação muito melhor que a Itália, muito melhor que a Grécia, muito melhor que a Irlanda e muito melhor que a Espanha. E não tivemos em Portugal nenhuma daquelas patologias que foram graves, no caso da Grécia iludindo as contas de Bruxelas com a conivência do Goldman Sachs ou, no caso da Irlanda, dominada por meia dúzia de bancos, que - não tendo onde pôr o dinheiro - resolveram criar uma bolha imobiliária. Nós não tivemos nada disso. O que é que nós tivemos? O azar de estar na Europa. Portugal passou a ser um alvo de ataques especulativos que - no fundo - não se justificavam em termos estritamente económicos.

Mas a economia portuguesa está muito exposta ao exterior exactamente porque precisa de financiamento externo.

Portugal poderia perfeitamente pagar a sua dívida, mantendo o crescimento, que estava paralisado porque somos uma economia fraca com uma moeda forte. O nosso défice aumentou todo com o euro. Então porque caímos nessa emboscada?, podemos questionar. Esta crise existe porque não houve um aprofundamento europeu suficiente. Pensei que o euro fosse um estádio desse aprofundamento, mas todos os aprofundamentos que se tentou fazer foram bloqueados. Não conseguimos ter uma política monetária, nem políticas sociais nem fiscais mais ou menos convergentes. Temos apenas uma moeda comum, que beneficia quem pode produzir com uma moeda forte. O euro foi o grande negócio da Alemanha.

Mas Portugal não deixa de estar mais debilitado que outros países...

Portugal está em crise financeira por contágio. Porque é um elo fraco, porque é uma economia fraca, com problemas estruturais, mas não é a Portugal que os capitais financeiros querem atingir. Querem atingir Espanha e Itália. Só que não podem lá chegar sem ir por Portugal, pela Grécia e pela Irlanda. Os nossos comentadores dizem mal do Estado, das políticas sociais, mas depois dizem umas frases suaves sobre os mercados financeiros. Dizem que deviam ser mais regulados e que não deviam ganhar dinheiro com as apostas na bancarrota dos estados e que isso não é uma coisa muito ética. E ficam-se por aí. O que se passa é um crime contra a humanidade: apostar em títulos de dívida e fazer tudo para que esses títulos não sejam pagos, porque quanto mais bancarrota tiverem mais juros vão cobrar a curto prazo. Eles ganham com a falência dos estados. Jogam com elas porque são mundiais e não há nenhum governo mundial para os regular.

O Prémio Nobel Paul Krugman diz que os mercados são um bando de miúdos de 20 e tal anos, bêbados e encharcados em cocaína...

São um bando de criminosos, que andam por aí muito bem vestidos, mas são uns mafiosos. Não há dúvida que se trata de um crime contra a humanidade, porque estão a lançar para a fome populações inteiras, para que uns poucos enriqueçam de uma maneira escandalosa. Estive em Nova Iorque e na 5.a Avenida bateram-se os recordes de venda dos produtos mais caros. Voltaram a abrir as carteiras, têm dinheiro como nunca em Wall Street, aqueles que produziram a crise.

O professor tinha dito que o neoliberalismo tinha falido, mas afinal...

Aí quase tenho de me retratar. Nunca imaginei que o neoliberalismo tivesse canibalizado tanto os estados. O neoliberalismo nacionalizou os estados, os bancos nacionalizaram os estados, não foram os estados que nacionalizaram os bancos. Passou a ideia de que um banco não pode falir. As empresas podem falir, um banco não pode falir. Faliram todos com a Grande Depressão nos EUA, mas nos últimos anos souberam como controlar os estados e começaram por fazer isso nos EUA. Quem é que nos últimos 20 anos financiou as campanhas nos EUA? Wall Street. A campanha do Obama? Wall Street. Quem é que Obama nomeia para seu consultor financeiro mais íntimo? Timothy Geithner. De onde vem Timothy Geithner? De Wall Street. Os abutres dos mercados financeiros estão a destruir a riqueza do mundo para se enriquecerem escandalosamente sem nenhum controlo e há-de haver um momento em que o povo, os governos, vão dizer basta. E os portugueses, quando começarem a sentir no bolso e na cabeça, e não só no bolso, estas medidas que vão começar a ser aplicadas.

O Presidente da República tem dito que não se deve achincalhar os mercados porque eles podem reagir contra nós...

Penso que o senhor Presidente da República está equivocado. Não há outra solução para a Europa que não seja a regulação financeira. Os mercados vão destruir o bem-estar das populações, criar um empobrecimento geral do mundo, para o enriquecimento de poucos. É necessária uma regulação forte. Não digo que seja igual àquela que se viveu nos anos 60 - quando uma empresa de Nova Iorque não poderia investir em Nova Jérsia, que fica do outro lado do rio. Mas hoje os mercados estão globalizados e os estados são nacionais, e ainda por cima não se unem. Aconselho o professor Cavaco Silva a abrir os jornais: na Grécia os juros estão a 12,5% - obviamente o país nunca vai pagar aquela dívida - apesar do dinheiro que lá se injectou.

A fazer fé nas sondagens, Cavaco Silva irá vencer um segundo mandato. Presumo que votará Alegre.

Não é seguro que ele ganhe as eleições, pode haver uma segunda volta e, numa segunda volta, votarei Alegre certamente. Cavaco Silva vai fundamentalmente ser como Presidente a pessoa que já foi, para que as suas ideias se realizem mais depressa precipitará eleições.

Como viu o mandato do Presidente da República?

Foi um mandato medíocre, não foi um mandato de grande rasgo. Precisávamos de um Presidente que tivesse uma magistratura de influência principalmente ao nível europeu. Cavaco Silva poderia ter levado a Bruxelas a imagem se um país de boas contas. Ao contrário, aliou-se àqueles que acham que os mercados sabem tudo, juntou a sua voz aos trauliteiros da desgraça do tipo Medina Carreira. Vozes como essas deviam ser desautorizadas e o nosso Presidente não fez nenhum esforço para recuperar uma margem de manobra exterior.

O FMI vai entrar em Portugal?

Não tenho nenhuma confiança de que os que estão nesse grande mercado lucrativo dos títulos de dívida soberana não estejam com os olhos em Portugal. Para chegar a Espanha, obviamente. Como é que fazem isso? Com outra coisa escandalosa, que são as agências de notação. As empresas dizem que o mundo é dominado por dois poderes: o poder militar dos EUA, que já não é económico, e pela Moody''s. Porque são eles que distribuem a notação e os créditos, controlam a minha conta bancária, a pensão da minha mãe e a comparticipação nos medicamentos. Esses mercados estão ansiosos por mais uma ameaça de bancarrota e isso sobe imediatamente o preço da dívida. Acha normal que o preço da dívida de Espanha esteja exactamente no mesmo valor que o da dívida do Paquistão? São as agências de notação, as mesmas que em 2008 atribuíram as maiores notas aos bancos que faliram. O Lehman Brothers tinha a maior notação. O objectivo é atacar o euro.

Mas têm uma agenda própria?

Têm. São americanas e estão ligadas ao capital financeiro onde estão concentrados os credit default swaps. São um pequeno grupo.

E em 2011, com cortes salariais e o desemprego a crescer, como é que a sociedade se vai adaptar?

Com estas medidas de curto prazo, se não forem compensadas com medidas de médio prazo que tenham a ver com emprego ou crescimento, Portugal vai ficar numa situação muito difícil mesmo no que respeita ao pagamento da sua dívida. Mas as medidas de médio prazo não podem vir de Portugal isolado, têm de vir da Europa.

Isso faz-nos voltar à crise do euro.

Desde o início da crise na Grécia que se mostra que o projecto europeu ou já não existia ou faliu. A Europa não se reconheceu como um todo no momento em que o seu parceiro entra em crise. Os mercados viram ali uma fraqueza. E porque era importante essa fraqueza? Por causa do dólar. Há lutas políticas nestes mercados e eles não são nada cegos. O que está em causa é impedir fundamentalmente que o euro seja uma alternativa ao dólar - e isso estava a começar a ocorrer. Porque é que o Saddam Hussein morreu? Saddam, que foi agente dos EUA, que fez guerra contra o Irão a mando dos EUA, a quem quiseram passar tecnologia nuclear, começou a cometer um erro: começou a ver a debilidade do dólar e a querer pôr grande parte das suas reservas de petróleo em euros. A China recentemente fez um aviso aos EUA: a debilidade do dólar podia fazer com que o país começasse a diversificar as suas reservas. Era muito importante que o dólar mostrasse mundialmente que o euro não é uma maravilha, que é uma moeda frágil e que até pode desaparecer.

Vamos ter confrontos sociais na rua no próximo ano?

É muito difícil prever essa situação porque não há uma relação directa entre o agravamento das desigualdades e a confrontação social. Portugal esteve metade do século xx sem democracia. Há uma cultura autoritária, de obediência, de medo. Foram 50 anos em que os outros países todos organizavam movimento sociais, sindicatos, e em Portugal nada aconteceu. Não pensemos que isto se curou nestes últimos 40 anos porque foram anos demasiadamente fáceis. Até 1974 tínhamos colónias, ficámos sozinhos 10/12 anos e em 1986 já éramos parte da Europa. Mas estou convencido que, no momento em que estas medidas se agravarem, vamos ter uma maior organização social e sobretudo sofreremos o contágio europeu. Vai haver obviamente mais contestação na Europa. É dessa contestação que vai surgir o golpe de asa de que precisamos e vamos tê-lo por pressão popular.

Nas ruas?

Nas ruas. No princípio de 2000, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, que faleceu recentemente, fez uma coisa que o transformou num pária. Achou que parte da dívida do país era ilegítima e disse aos credores: "Eu pago-vos, se aceitarem, por cada dólar que vos devo, 30 cêntimos. Agora os outros esqueçam!" O Fundo Monetário Internacional achou um escândalo. Disse que Kirchner era um "pária", que a "Argentina não cumpre". A verdade é que a Argentina fez isso mesmo. Os credores tiveram de aceitar. A Argentina levantou a cabeça e fez o seu desenvolvimento económico. Quando morreu Néstor Kirchner, a primeira coisa que fiz foi ir à página do FMI para ver o que dizia. E lá estava um elogio enorme do FMI pela capacidade de pôr a economia da Argentina de novo a crescer. Porque é que Kirchner se recusou a pagar a divida? Por pressão popular.

O mesmo poderá acontecer na Europa?

Nada disto é muito previsível, depende muito dos países e da sabedoria política. As medidas em Portugal estão a ser mais graduais do que foram na Grécia e as pessoas vão amolecendo. Agora há um momento, um limiar, em que as pessoas dizem: "Isto é injusto." Quando muita gente, como a minha mãe, os nossos irmãos, nos ligar e disser: "Agora tenho de pagar todo este medicamento, quando pagava só x. Onde vou ter dinheiro?" Quando isto começar a generalizar-se, é previsível que haja contestação. Não propriamente dos sindicatos. A contestação há-de ter muita espontaneidade, parte das pessoas que vão para a rua protestar. Porque a situação é intolerável.

Uma mudança de governo poderia fazer diferença?

Nas actuais circunstâncias do panorama político, não faz nenhuma. E se fizer, neste momento, será para pior. Olhamos para o programa do PSD e o que está a ser praticado e é o quê? Mais privatização? Fim do Serviço Nacional de Saúde? São mais ou menos as medidas que o Fundo Monetário Internacional vai instituir quando aqui chegar.

E vai chegar?

Incrivelmente, há aí muitos tontos, economistas trauliteiros, que tenho hoje muita dificuldade em respeitar, que até parece que desejam isso. Mas desejam--no porque têm boas reformas, bons empregos, foram ministros ou estão em grandes empresas, são aqueles que não serão nada atingidos por essas medidas. Mas a maioria dos portugueses vai ser duramente atingida, porque são medidas cegas, que passam por privatizar tudo. Vejo comentadores, analistas, sociólogos deste país a dizerem que nós ainda dependemos muito do Estado e que é preciso termos confiança na sociedade. Mas que sociedade? Na filantropia, na caridade, no Banco Alimentar? O que vai ser destes jovens? Trabalho muito com estudantes, quer aqui quer nos EUA, e os meus estudantes nos EUA são cada vez mais velhos. São doutoramentos atrás de doutoramentos para adiar o desemprego. Tenho uma grande estima pelos estudantes de hoje. Às vezes quero levantar muitos problemas, mas os estudantes estão sobretudo preocupados com saber em que é que aquilo vai ajudar às suas empregabilidade. É muito difícil dizer a um estudante que um poema pode ajudar à sua empregabilidade.

Passa grande parte do tempo nos EUA. Obama desiludiu?

Desiludiu bastante. O presidente Obama acabou por, de certa maneira, sucumbir às mesmas crises, às mesmas lógicas. Transformou-se num nacionalista um pouco provinciano, indo esmolar à Índia investimento para criar emprego no Brasil, indo pedir à Índia que os ajudasse a impor os produtos geneticamente modificados em África. E porquê? Porque as grandes empresas de sementes transgénicas são todas elas americanas. Cada presidente americano tem a sua guerra. George W. Bush teve o Iraque, Obama vai ter o Afeganistão, se é que fica por aí. Porque se a gente olhar bem para o que saiu do WikiLeaks só estamos à espera de saber se são os EUA ou Israel que vão atacar o Irão.

O WikiLeaks foi o acontecimento internacional do ano?

Foi. Agora sabemos o que foi feito no Iraque. Os dados que têm saído do WikiLeaks são aterradores, acerca da brutalidade da guerra e das atrocidades que se cometeram, da falsidade dos discursos que se fizeram. Percebemos como é despótico o poder, como é falso e hipócrita. O mundo está feito de falsidade e o WikiLeaks foi uma grande desilusão para quem acreditava que a diplomacia era uma coisa muito nobre.

Acha que houve algum efeito moralizador?

Espero que haja. Mas o WikiLeaks tem algumas debilidades. Uma que é conhecida é que Israel foi poupado. Toda a gente esperava que, havendo uma libertação de documentos, Israel fosse o país mais embaraçado. Suspeita-se hoje que havia um acordo entre o Julian Assange e o primeiro-ministro israelita. Por vontade de Julian Assange? Porque a Mossad é uma agência de serviços secretos que não olha a meios para destruir os seus inimigos? Nunca saberemos. Estamos a passar de um período em que os activistas eram todos aqueles que estavam normalmente de fora - os revolucionários, os anarquistas, os sindicalistas não tinham nada a ver com o sistema - para um período em que as transformações, as alterações têm partido de dentro do sistema. Vêm de quem tem acesso ao conhecimento.

A forma de fazer diplomacia poderá mudar daqui para a frente?

Com certeza que sim. As escolas diplomáticas de todo o mundo devem estar a analisar estes documentos e a dizer assim: realmente, se os cidadão se derem ao trabalho de ler os jornais e, todos os dias, os jornais trazem novas informações sobre o nível da diplomacia, verificam que o que resulta dessa análise é que o nível da diplomacia é muito baixo. Dizem coisas que estão factualmente erradas.

São preguiçosos...

São preguiçosos. Perdem muito tempo nos jantares, nas recepções, naquela vida diplomática que hoje não é o ritmo da vida. A vida já corre por outras vias e eles continuam ainda como se estivéssemos no século xix. Hoje está-se a verificar que a informação que os diplomatas enviam já é do domínio público no momento em que eles a escrevem. Isto desacredita o sistema actual de diplomacia que a gente tem ainda mais porque é um sistema caro e eu acredito que quem quiser fazer as contas de custo benefício analisando estes documentos poderá tomar algumas decisões interessantes. É muito importante saber-se se nas festas do Berlusconi as senhoras se despem todas ou se só fazem topless? Os países pagam altamente a serviços diplomáticos para andarem a coscuvilhar a vida privada do Berlusconi ou do Sarkozy?

A diplomacia é um pouco como fazer manteiga: toda a gente a come, mas ninguém gosta de ver como se faz...

É exactamente isso.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

WIKIPÉDIA, A BIBLIOTECA QUE TODA A GENTE USA

Jornal Público, 11.01.2011
"Espaço público"
José Vítor Malheiro

A ferramenta existe e o público usa-a.
Falta que as elites portuguesas façam a sua parte.

Estive há uns meses num jantar onde muitos dos convivas eram professores e onde, às tantas, se começou a falar da Wikipédia. O tom geral era um lamento do tipo "agora-os-estudantes-copiam-tudo-da-Wikipédia-e-os-trabalhos-só-têm-disparates". Depois de algumas perguntas, percebi que a esmagadora maioria dos presentes nunca tinha sequer consultado a Wikipédia, mas sabia que era uma enciclopédia online onde toda a gente podia escrever e concluía por esse facto que se tratava da mais monumental colecção de disparates jamais coligida pelo espírito humano, uma espécie de anti-Cristo do saber, uma mancha negra com que o Maligno estava a inundar a Internet e da qual era preciso proteger os jovens espíritos maleáveis.
Esta ideia persiste ainda em muitos espíritos e, curiosamente, em particular no meio de professores, que combatem infrutiferamente a epidemia de cópias "da Internet" nos trabalhos escolares de todos os graus de ensino.
A verdade, porém, tem outras facetas. E uma delas é que a Wikipédia é um instrumento cuja qualidade média é elevada - muito boa ou excelente em muitos casos - e que constitui um salto na promoção e na difusão do saber comparável apenas à construção da biblioteca de Alexandria, ao movimento dos Encyclopédistes ou à Escola Republicana.
A Wikipédia, que comemora dez anos esta semana, tornou-se uma funcionalidade central da Internet - tanto como o Google, mas com a diferença de que há outros motores de pesquisa equivalentes e não há outra Wikipédia. Hoje em dia, a maior parte das pesquisas que fazemos na Internet tem uma entrada da Wikipédia no topo dos resultados. E há centenas de milhões de utilizadores que a utilizam regularmente.
Que haja uma biblioteca que tenha esse êxito, que milhões de pessoas se habituaram a consultar diariamente, para tirar dúvidas de trabalho, para satisfazer curiosidades fúteis, para saber mais, devia ser visto como uma felicidade. Que esta biblioteca esteja em cima de tantas mesas 24/7 e que seja gratuita, devia ser vista como uma bênção.
É evidente que existem cuidados a ter no uso da Wikipédia e que, como qualquer outra ferramenta, é preciso conhecer as suas limitações, mas o principal problema com a Wikipédia em português é que muitos criticam mas poucos trabalham para a melhorar.
É que, quando digo que a Wikipédia é excelente estou a falar da Wikipédia em geral e da Wikipédia em língua inglesa em particular - mas a Wikipédia em português é fraquinha. Só que a responsabilidade disso é ... exactamente dos mesmos profissionais que se queixam da sua falta de qualidade. Dos professores, dos cientistas, dos jornalistas, dos médicos, dos advogados, das universidades, das outras escolas, das organizações profissionais.
Na era da Internet, quando a Wikipédia se transformou numa ferramenta de acesso universal à informação de todos os tipos, de uma forma simples e democrática, não é aceitável que haja tanto saber produzido por dinheiros públicos que não seja vertido pelo menos em parte para estas páginas - onde pode ser encontrado, acedido, usado e enriquecido por todos. Seria normal que as escolas de todos os graus de ensino (com destaque para o ensino superior), os institutos públicos e as instituições de investigação portuguesas fossem contribuintes regulares da Wikipédia - como acontece nos Estados Unidos. Seria normal que escrever uma entrada para a Wikipédia fosse um projecto comum nas universidades portuguesas. Mas não o é. A ferramenta já existe, o público já o usa. Só falta que as elites se disponham a fazer a sua parte para melhorar o que existe, em vez de se remeterem à crítica sobranceira e distante. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

MALANGATANA

Jornal Público * 06.01.2011



1936-2011

O pintor da identidade moçambicana
Por Sérgio C. Andrade
 
Era o nome mais reconhecido da arte africana lusófona. Autor de uma obra vasta e muito pessoal, Malangatana faz o cruzamento da cultura indígena com a cultura do colonizador, criando assim uma identidade cultural moçambicana. Tornou-se também numa espécie de senador do seu país

Actualmente, podem ser vistas obras de Malangatana em duas exposições em Portugal. Uma com desenhos inéditos, intitulada Novos Sonhos a Preto e Branco, na Casa da Cerca, em Almada, outra com obras da colecção de arte africana de Pancho Guedes no Mercado de Santa Clara, junto à Feira da Ladra, em Lisboa. Há murais em Maputo e na Beira (Moçambique), mas também em espaços públicos na África do Sul e na Suazilândia, na Suécia e na Colômbia. E a sua arte está representada em colecções de museus de Lisboa e de Luanda, Harare (Zimbabwe) e Nova Deli (Índia). Além de ter realizado exposições, individuais e colectivas, em grandes museus e galerias de todo o mundo.

São algumas das marcas do reconhecimento internacional de Malangatana Valente Ngweny, o pintor moçambicano que morreu na madrugada de ontem, aos 74 anos, em Matosinhos, no Hospital de Pedro Hispano, onde tinha sido internado há alguns dias para tratamento de um cancro.

Pancho Guedes, arquitecto seu amigo e a quem Malangatana ficou a dever as condições para afirmar a sua vocação de artista na capital moçambicana no final da década de 50, foi dos primeiros a expressar o seu pesar pelo desaparecimento deste "artista único". "É uma notícia terrível. Eu sabia que estava doente, mas ele, que era um grande optimista, dizia sempre que estava tudo bem", disse ontem ao P2 Pancho Guedes, agora a viver entre Lisboa e Sintra, mas que realizou grande parte da sua obra em Moçambique nos anos 50 e 60.

"Malangatana foi o primeiro artista [plástico] africano, negro, moderno no espaço da lusofonia", diz José António Fernandes Dias, director da plataforma cultural África.cont, comissário e especialista em arte africana. A pintura de Malangatana configura um certo arquétipo da arte do continente negro, com as cores quentes e uma presença ostensiva da figura humana a ocupar todo o espaço da tela.

O crítico Rui Mário Gonçalves diz que a originalidade da pintura de Malangatana está na forma como ele casa a tradição da sua terra, com destaque para a figuração das lendas da etnia ronga, com o imaginário do expressionismo e do surrealismo bebidos na pintura europeia, e até na obra de Picasso, de quem era "um admirador fascinado". Nesse sentido, este crítico coloca a obra do artista moçambicano na mesma linha da do cubano Wilfredo Lam (1902-1982), que também bebeu a influência do autor de Guernica.

Alda Costa, professora moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, lamenta o desaparecimento de Malangatana e recorda que ele acontece poucos dias após o do pintor Pais Shikani, falecido no último dia do ano passado naquela cidade, e também depois da morte, nos anos 90, do escultor Alberto Chissano. "É o fim de uma geração, de três artistas que trabalharam juntos nos anos 60", diz esta especialista em arte moçambicana, que, no entanto, ressalva ter sido Malangatana a conseguir o maior reconhecimento além-fronteiras. "É um artista sem escola, que fez o seu caminho de uma forma muito pessoal, mas dentro de um determinado contexto histórico", acrescenta.

"Malangatana é muito importante, porque faz o cruzamento da cultura indígena com a cultura do colonizador. E consegue criar uma identidade cultural moçambicana", diz o crítico João Pinharanda. "É o mesmo que os escritores Craveirinha ou Mia Couto fazem com a língua portuguesa na sua obra, ou que Pancho Guedes faz com a arquitectura ocidental ao chegar a África", exemplifica.

Luísa Soares de Oliveira realça a importância que o pintor teve no processo de internacionalização da arte portuguesa nos anos 70, aproveitando "a frescura de estilo" que marcava as suas obras. "Reconhecia-se em Malangatana uma pintura que se afastava do folclorismo africano e que por isso se aproximava dos conceitos do modernismo", diz esta crítica, recordando que, a partir dos anos 80, a sua obra caiu num certo esquecimento, e lamentando que as suas obras não estejam hoje expostas nos principais museus portugueses, citando o Chiado e a Gulbenkian. "Estamos na hora certa para voltar a olhar para Malangatana com mais atenção", nota.

1972, dupla exposição

Rui Mário Gonçalves foi o responsável pela organização das duas primeiras exposições de Malangatana em Lisboa, em 1972 - na Sociedade Nacional de Belas-Artes e na Livraria Bucholz -, que viriam a torná-lo no "pintor moçambicano mais conhecido em Portugal", fazendo depois falar dele por todo o mundo, lembra o comissário. No início dessa década, Malangatana Valente Ngwenya (o apelido significa "crocodilo") contava já mais de duas dezenas de exposições, colectivas e individuais, realizadas na sua terra natal Matalana (distrito de Marracuene) e também em Lourenço Marques (actual Maputo), além de em cidades vizinhas na Nigéria e na África do Sul. Pancho Guedes recorda o papel que teve na revelação dos talentos do jovem que então "servia à mesa e era apanha-bolas de ténis" no Grémio, um clube da elite branca na capital da então colónia portuguesa. "À noite, ele estudava e frequentava o Núcleo de Arte, começou a pintar e rapidamente se tornou conhecido", recorda o arquitecto, que lhe cedeu um espaço na sua garagem para a montagem do seu atelier. "Malangatana fazia, no início, uma pintura muito própria e muito viva, sem nenhuma influência exterior, e com uma grande atenção pela África. Tinha uma imaginação excepcional", nota Pancho Guedes. Rui Mário Gonçalves confirma esta marca e realça a forma como o pintor miscigenava as suas influências: pintava mulheres africanas com cabelos compridos como se fossem europeias, conjugava as diversas crenças religiosas, as da sua terra com as do catolicismo e do protestantismo.

"Nos seus quadros, há sempre muitos olhos, sempre muito abertos para o mundo", nota o escultor José Rodrigues. Rui Mário Gonçalves sintetiza, dizendo que se trata de "uma pintura altamente comunicativa".

E isto correspondia a outra faceta da personalidade de Malangatana: o seu humanismo e envolvimento com a causa, primeiro, da luta contra o colonialismo (chegou a ser preso pela polícia política PIDE por causa da sua ligação ao movimento de libertação Frelimo) e, depois, com a da independência e com o Governo de Samora Machel.

"Antes da independência, Malangatana pintava o sofrimento, a escravatura, o trabalho forçado", diz José António Fernandes Dias, que considera a primeira década da sua obra como "a mais criativa". Após a independência, "o pintor envolveu-se na criação de uma identidade nacional moçambicana" e na apologia do nacionalismo, acrescenta o responsável da África.cont. E acabou até por aceitar, no período maoísta do Governo de Samora Machel, ser colocado "num campo de reeducação" na zona do Zambeze. A diferença e a importância da sua obra viriam, no entanto, a ser mais tarde reconhecidas pela Frelimo, que o fez deputado (entre 1990-4).

Malangatana torna-se, então, um "senador" da República de Moçambique e uma referência da cultura nacional. Em 1997 é nomeado Artista da Paz pela UNESCO - o secretário-geral da organização da altura, Federico Mayor, disse dele: "É muito mais do que um criador; é alguém que demonstra que há uma linguagem universal, a linguagem da arte, que nos permite comunicar uma mensagem de paz e a recusa da guerra." E vai sendo homenageado com doutoramentos honoris causa em universidades como a de Évora, no ano passado.

O Estado português, que o distinguiu com a medalha da Ordem do Infante D. Henrique, lamentou ontem o desaparecimento de Malangatana numa nota do Ministério da Cultura: "O carismático pintor moçambicano deixa um legado de intervenção e criação cultural de grande expressão no mundo lusófono e de reconhecimento internacional." E a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), através do seu secretário executivo, Domingos Simões Pereira, citado pela Lusa, lamentou "a perda para África e para o mundo" resultante da morte do pintor.

Antes da trasladação do corpo de Malangatana para Maputo, realiza-se hoje uma cerimónia fúnebre no Porto, e outra amanhã, nos Jerónimos, em Lisboa, ambas organizadas pelo Ministério da Cultura português e pela Embaixada de Moçambique em Lisboa. À hora do fecho desta edição, não havia mais informação disponível sobre o funeral do pintor.